Era uma vez um navio.
Era um navio antigo mas à primeira vista aparentava estar em bom estado…só à primeira vista…porque um segundo ou terceiro olhar revelava que só aparentemente aquela nau estava em condições. Anos e anos em que as necessárias manutenções se resumiram a camadas de tinta sobre a ferrugem que grassava nas entranhas do aço, transformaram aquele navio em “bibelot” de cais. O lugar dele era bem amarrado a porto seguro.
Em determinada altura a tripulação deste navio achou que este não era inferior a outros navios e que o lugar dele era em alto mar, desafiando a força dos oceanos e partindo à conquista do seu lugar no mundo. Algumas vozes mais avisadas atreveram-se a dizer aquilo que estava à vista de todos, mas ninguém quis ver…este navio só se poderia aventurar em mar alto depois de uma grande revisão, onde todas as suas debilidades estruturais fossem resolvidas. Era um trabalho árduo, mas na opinião destes (poucos) tripulantes tinha que ser feito, sob pena da nau não aguentar os primeiros sinais de intempérie.
Estas vozes foram de pronto silenciadas pelas vozes dos “aventureiros” que queriam rapidamente reclamar o seu lugar no mar da prosperidade e modernidade. “Velhos medrosos…nem mera nota serão nos livros de história” – disseram.
E partiram, numa manhã radiosa, de mar chão e vento fraco…e os primeiros tempos de navegação foram calmos…ou pelo menos assim aparentavam. Uma ou outra avaria na máquina era resolvida com o espírito desenrascado que era característica desta tripulação, e grande parte dos tripulantes nem davam por nada, inebriados que estavam pela antevisão do novo mundo e das suas riquezas.
Foi sem aviso que surgiu a tempestade perfeita. Condições favoráveis para tal, fizeram com que ventos e vagas de proporções bíblicas se levantassem e fustigassem sem piedade o pobre navio.
Como seria de esperar todas as debilidades vieram ao de cima. O casco carcomido pela ferrugem rapidamente abriu brechas e a água entrava inclemente num dos compartimentos. A prioridade agora era, só podia ser, manter o navio à tona.
Como infelizmente é vulgar em situações de emergência, nem todos os tripulantes actuaram em conjunto…de facto as atitudes eram bem díspares.
Alguns, achando que a responsabilidade não era deles recolheram aos seus aposentos adoptando uma postura de “alguém há-de levar o navio ao porto…logo se verá”.
Outros, iluminados certamente, acham que é agora que se deve começar a fazer a grande revisão que este navio sempre necessitou, ignorando olimpicamente o mar revolto e o facto, para eles despiciendo, de o navio se estar a afundar “temos que tornar este navio tão robusto como os outros” – diziam.
Havia ainda alguns que se deram ao luxo de passar para um navio que passava perto, dizendo que a culpa daquilo não era deles, e que estavam no seu direito de salvar a vida…”encontramo-nos no porto” – diziam estes.
E o comandante? Que fez? Que ordenou?...Bom o comandante em vez de tentar rapidamente vedar as brechas por onde entrava água, manobra arriscada diga-se, optou por uma solução mais radical “fechem a porta estanque do compartimento que mete água” – disse o senhor. Era uma solução…o compartimento ficaria alagado, inutilizado, mas o navio teria reserva de flutuabilidade para continuar à tona. Penso que alguém ainda alertou o comandante para o facto desta solução tirar ao navio grande parte das suas características…e se o navio não ia ao fundo…também não andava para a frente; “comandante, se formos forçados a fazer o mesmo noutro compartimento ficamos quase parados e sujeitos a toda a violência da tempestade” – disseram. O comandante foi irredutível, manter o navio a flutuar era o seu desígnio…mesmo que não fosse para lado nenhum.
E falta alguém? Sim falta…aqueles de quem não reza a história…um punhado de loucos que continuam, não desistem, cumprem, obedecem, não discutem, trabalham até à exaustão e só admitem parar quando o navio chegar ao porto.
Qual o fim desta odisseia?…não sei! Não sei se o navio chega ao porto, se afunda, se chega a um porto que não pretende…só tenho a certeza absoluta de uma coisa…aqueles que levarem o navio ao porto…são exactamente aqueles que não vão ter qualquer tipo de reconhecimento…todos os outros de uma forma ou de outra serão heróis…